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quinta-feira, 14 de junho de 2012

Relato de Campo

Estava chovendo. Era mais ou menos umas 8:00hs da noite.
Ficamos um tempo parados dentro do carro, até que apareceu Camilo (nome fictício) e resolvi sair e conversar com ele.

Rapaz de 15 anos. Estava descalço e com os braços encolhidos dentro da camisa. Convidei-o para nos abrigarmos sob a extensão para a rua do teto de um dos bares da Feira de São Joaquim.

Ele se sentou sobre uma caixa, encolhendo as pernas para dentro da camisa toda esticada e me disse que Samuel (nome fictício) foi preso por tentativa de roubo de um mercado.

Diferentemente dos outros dias, ele não era mais aquele outro Camilo, tão seguro de si, tão destemido, tão confiante. Ele estava frágil, sentindo-se só, com medo. Veio em busca de ajuda e pediu ajuda. Pediu que telefonássemos para a mãe dele e perguntássemos a ela se ele poderia ir lá só para pegar um cobertor e tomar um prato de sopa.

Ligamos. Ela se lembrou de mim. Há um ano, conversamos num bar que existia antes da reforma pela qual a Feira de São Joaquim vem passando atualmente. Enquanto bebia e fumava, contou-me que desde os 10 anos, principalmente após a morte do pai, ele mudou radicalmente - e, após conhecer o crack, chegou a vender todos os objetos da casa, deixando-a completamente vazia. Contou que levou para psiquiatras, psicólogos e neurologistas. “Ele tem pobrema na cabeça, doutor”, ela disse.

Na época, ela estava determinada a tirá-lo daquela vida nas ruas, no meio de bandos de moleques. Sentia-se frequentemente ansiosa e, contra isso, passou a tomar diazepan diariamente. “Eu tomo, doutor, e o mundo pode cair que eu não ligo”. Passei o telefone para Camilo. “Ela disse que eu posso ir”, ele me disse e depois perguntou se nós podíamos levá-lo para a casa da mãe no carro do Consultório de Rua. Conversei com a equipe e, no final, achamos por bem levá-lo tanto para coroar um vínculo que vem sido construído há dois anos, quanto como estratégia de articulação com a família.

Ele foi conosco – eu, o capoeirista e a enfermeira - e pudemos acompanhá-lo até a sua casa. Boa casa. Já na sala, uma mega tv de várias polegadas e tudo que me pareceu bem típico de um certo padrão médio de consumo idealizado em nossa sociedade. Lamentou que ele estivesse em tão deprimente situação, uma vez que tinha condições para mantê-lo dignamente, e disse com pesar que tudo o que possui atualmente nem se compara ao que possuía em sua antiga casa e que foi totalmente vendido pelo próprio filho.

Mostrou os diagnósticos do psiquiatra e do psicólogo: transtorno opositivo desafiador e retardo mental. Comentei que são categorias em discussão, mas que, de todo modo, tenho outra percepção do rapaz. Ele me pareceu um rapaz inteligente, esperto e tem se mostrado, desde quando eu o conheci, mais maduro (é certo que não muito, mas, de todo modo, mais).

Apesar de dizer que ele tem “pobrema”, não deixou de culpá-lo, como se houvesse um sujeito dado, com livre-arbítrio, que decide, voluntariamente, ser um “pobrema”. O rancor pareceu ainda não ter sido curado, motivo pelo qual parecia cega à percepção do poder vampiresco do crack em um cérebro imaturo e sem ter construído ainda qualquer estrutura reflexiva mínima que pudesse, ainda que minimamente, conter e limitar a necessidade rapidamente renovada de satisfação do impulso do prazer vinculado ao estímulo da área tegmentar ventral.

“Ele não quer”, ela disse, “por isso eu desisti”. Sua expressão era de frustração e sofrimento. Era um momento delicado. Intervi afirmando que nós, do Consultório de Rua, compreendíamos a sua dor e que estávamos ali para dar apoio a ela. Mas nós também estávamos ali, continuei a dizer, para dar apoio a ele, no que diz respeito às questões relacionadas ao uso de substâncias psicoativas.

Guiados pelo princípio da liberdade e do respeito, apostando no vínculo, na confiança que ela e, principalmente ele, depositou em nós, dissemos, por fim, que, independentemente do modo como pode ser concebido o problema do uso danoso de crack, continuamos apostando que ele, com o nosso apoio e o apoio da família, tem poder de tomar as rédeas do seu destino, tornando-se sujeito de sua própria vida.

Recomendamos a ela o grupo de família do CETAD e nos disponibilizamos a levá-lo ao mesmo local pelo menos para conhecer e avaliar se é de seu interesse. Senti que o clima mudou, pelo menos assim indicou o fato da mãe convidá-lo a passar aquela noite chuvosa em casa, o que ele aceitou de pronto e com expressão de alívio.

Já foi um começo para uma nova esperança...

Anselmo Chaves é psicólogo e integra a equipe do Consultório de Rua de Salvador

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